Imagens, Comentários e Estórias de Valdanta (Chaves) e das suas gentes. O meu endereço é "pereira.mos@sapo.pt"
Domingo, 30 de Dezembro de 2007
Uma Matança Transmontana

Valdanta

 

Esta imagem de uma matança tradicional "surripiada" do Blog da Lai Cruz -Lai...Lai...Lai..., apresento um pequeno extrato de um livro escrito e oferecido por um amigo, João Madureira, que relata com muita originalidade e verdade uma matança numa aldeia qualquer na região fria de Trás-os-Montes. Revivam este acto solene e importante da vida do campo e recebam um conselho amigo leiam este livro da Editora Livreiro chamado "Crónica Triste de Névoa", publicado quando da comemoração dos 75 anos da elevação de Chaves a cidade.

… …
Nestas povoações, Dezembro é o mês do porco.
Este animal, sendo o mais sujo de toda a criação é, no entanto, aquele que mais recebe o trato feminino da casa, o que revela mais inteligência e o que mais perto vive da gente. Regra geral, habita por debaixo da cozinha, sítio donde se lhe deita o alimento e até se houve ressonar. Presta-se-lhe uma atenção permanente, porque se a ceva morre há desgraça em casa.
Para escolher a data da sua morte tem que se tomar especial cuidado com os poderes malefélicos da Lua. O dia escolhido deve coincidir com a fase lunar do Quarto Crescente, porque se for no Minguante a carne minga e se for no dia da Lua Nova, rompem-se as tripas. Os dias de Lua Cheia ficam para os adivinhos.
Dezembro vai frio. Nevou nos últimos dois dias. Hoje os primeiros raios de sol incendiaram de luz o manto alvo da geada que se fez durante toda a santa noite.
Ainda o sol não era nascido e já a Teresa de Jesus estava de fogueira acesa. É dia de matança. Dia de alegria. Mas ela sente-se triste. Custa-lhe ver morrer aqueles dois porquinhos que tanto trabalho lhe deu a engordar. Ganhou-lhe afeição. Andou todo o ano a carregar a erva e as couves, a ir ao moinho, a cozer-lhes, durante o inverna, a paparoca, a pôr-lhes a comida a tempo e horas, derreada com o peso dos enormes caldeiros. Isto tudo para além das outras tarefas da casa: fazer o pão, a comida, carregar e pitar a lenha, aturar os filhos e o marido, ajudar a botar as vacas, as ovelhas, tratar das alinhas e dos coelhos, sachar a horta, tratar do jerico, carregar o esterco das cortes, ajudar o João a sachar e a lavrar o centeio. E mais todo o resto. Foi ela que levou a porca ao borrão e que assistiu ao parto de dez lindos leitões. Foi ela, ainda, que quando um adoeceu, passou noites sem dormir, rezando ao Santo António orações a fio e, num desses serões fez a promessa de ir ao São Caetano a pé oferecer missas e velas ao santo padroeiro da bicharada, prometendo-lhes, caso o bicho sarasse, a queixada, as unhas, o peito e a orelheira.
Os homens já ali vêm. Sentem-se pelo ressoar das grandes brochas dos socos batendo no ralo empedrado da rua. São cinco. O João, o compadre Manuel, o seu pai, o sogro e o João Rato, o matador, que chega experimentando o fio das facas na polpa do dedo polegar da mão esquerda. A lâmina da faca sangradora assusta. Sobem devagar as escadas e vão sentar-se no escano bem junto da lareira onde arde uma grande fogueira. Aí matam o bicho que lhe rói as tripas. Lenta e regaladamente, mastigam bocados de pão centeio, acompanhados de figos secos e nozes. Por cima enfiam uns cálices de aguardente e sopram nas mãos. Ficam animados e desentorpecidos.
As mulheres chegam um pouco mais tarde e abonam-se com o mesmo mata-bicho. Lá fora corre um ar que corta a carne e penetra nos ossos.
As crianças começam, só agora, a despertar do sono. È dia de matança, é dia de convívio entre pais, filhos, primos, compadres e amigos – qualquer que venha.
Toda esta agitação é sonhada e desejada por todos logo nos primeiros dias de Dezembro. Quando começa o tempo frio e a faca começa a dar nos porcos da aldeia.
Os homens emborcam o último cálice de aguardente, dão uma passadela de mãos pelo lume e descem até ao curral. Já tudo está a postos desde véspera: o banco, os molhos de palha centeia, o alguidar de barro preto com sal e um pouco de vinagre para não coalhar.
As duas cevas estão em silêncio. Estranham a falta de comida desde a noite anterior. Foi a primeira vez que isso lhes aconteceu. E será a última. Teresa não lhes serviu a derradeira ceia para as tripas estarem vazias e assim poder ser mais fácil lavá-las.
O Manuel vai até à porta da corte e abre-a. Os bichos não se mexem. Ainda estão enterrados na palha. É a segunda surpresa. Estranham esta invasão, pois só estão habituados à presença de mulheres. O compadre enxota o primeiro cá para fora com a ajuda de um pau. Os outros três, à saída, agarram-no pelas orelhas e pelas patas. Manuel fecha a porta atrás de si e vai ajudar. A vítima mal se consegue mexer no meio daqueles homens tenazes que o agarram. Grunhe altíssimo. Ouve-se em toda a aldeia. Teresa desce as escadas apressadamente com as mãos a tapar os ouvidos e foge para longe a chorar. Não consegue assistir à morte dos seus requinhos.
O João Rato aponta a faca ao sangradouro, bem na direcção do coração, e laça um golpe enérgico. O sangue sai às golfadas. Jorra em borbotões escarlates e de espuma fumegante para o alguidar, para o braço do matador e algum para a cara de Ana Rosa que mexe o líquido com um pau para não o deixar tralhar. Os grunhidos espaçam-se até se extinguirem. O matador, terminada a sangria, mete uma folha de couve com sal no sítio onde espetou a faca para tapar o buraco. É a talhada do banco que se oferece à rapaziada.
A companheira tem a mesma sorte, não sem antes atirar com dois homens ao chão. Mas o esforço pela sobrevivência é inglório, à segunda pega foi ao banco e aí morreu.
Deitados, cada bicho em seu lado, aguardam no curral a vez de serem chamuscados.
Ó mulher, chega-me cá esses fachucos de palha – ordena o João -, anda lá que se faz tarde e os bichos arrefecem com o frio.
Agora tiram-se-lhe as unhas em quente e a pelagem arde que nem pólvora. Já se despejam os potes de água a ferver para a lavagem. Enquanto uns chamuscam, outros, com grandes facas, pedras ásperas, sachos, fouces ou outros utensílios cortantes, raspam a pele e cortam aqueles pelos que ficaram mal queimados, isto até os animais se encontrarem barbeados. Lavam-lhe as orelhas, a boca, metem-lhe um tapulho no ânus e viram as vítimas do outro lado para cumprirem tarefa igual.
A manhã vai correndo. O sangue cozido e fumegante é colocado no prato e servido à gente mesmo em cima da barriga dos sacrificados. Sabe pela vida assim quente e temperado com sal, azeite e alho, acompanhado pelo pão da véspera e pela pinga do vinho.
É neste momento que chegam dois dos filhos dos compadres carregados com pesadas pedras dentro de sacos que lhes mandaram ir pedir bem longe para afiar as facas. Inocentes, lá foram e vieram. Quando entregam os pesados rebenta uma forte gargalhada geral e só então se apercebem que lhes pregaram uma partida. O rapaz do Manuel, orgulhoso como é, desata a fugir e a insultar os adultos indo aninhar-se à lareira onde começa a chorar de raiva. Para o ano será ele a enganar os outros.
Agora limpos, os porcos vão ser abertos. Estendidos nos bancos, de barriga para o ar, tira-se-lhes a couracha da barriga, o soventre, o unto, os boches, os rins, e, por fim, as tripas. Perto do banco estão os alguidares que recebem as miudezas.
As tripas, donde se farão os enchidos, são depositadas num cesto, protegidas por uma toalha branca. À tarde, enquanto os homens à roda da fogueira jogam as cartas, acompanhados pela caneca de barro cheia de vinho esquentado ao lume, as mulheres irão lavá-las ao rio e apartar as grossas das delgadas, pois destinam-se a fumeiro distinto. O unto que se guardou no barro, depois de estendido na toalha, é salgado com sal miúdo, amanhado em forma de broa e pendurado ao pé da lareira para aí defumar e secar. Rijado numa colher, será o tempero da água quente onde se miga o pão com que se afaga e aquece o estômago antes de se ir para o monte nas manhãs frias de Inverno. Depois faz-se uma lavagem interna e lá vão os dois sacrificados para a adega ou a despensa, transformando-se no governo e na ventura desta família durante o ano. Pendurados na trave, de cabeça para baixo, ficam a enrijar e a esfriar durante dois dias, aguardando o momento da desmancha.
O dia acaba em jantarada. Come-se carne do monte, galinha guisada e batatas cozidas, a que se lhe junta carne velha de porco: pernil, presunto velho, orelheira e rodelas de salpicão. A Teresa mostra aos familiares e amigos que não é mulher desgovernada.
Já descida é a noite fria – pois neste tempo anda sempre cheia de pressa – e os homens tomam o caminho de casa. Vão eufóricos e quentes, cheios no estômago e na alma. O João acompanha-os até ao cimo do povo e ali se despede. O Manuel vira à direita e o compadre segue-o durante uns instantes.
… …
 Do livro "Crónica triste de Névoa" de João Madureira
 


publicado por J. Pereira às 14:04
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